SELECIONEI UMA CRÔNICA DO GRANDE NÉLSON RODRIGUES, TIRADA DO LIVRO "O ÓBVIO ULULANTE - PRIMEIRAS CONFISSÕES" DA EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS.
PIRÂMIDES E BISCOITOS
Antes de falar de João Guimarães Rosa, quero dizer ainda duaspalavras sobre o velho Rio. (Em nosso idioma, duas palavras
são duzentas.)
O brasileiro cospe menos, diria eu. Quanto às nossas
mulheres, nem cospem.
Mas, no tempo do fraque e do espartilho, a cidade
expectorava muito mais.
Lembro-me de antigas bronquites, de tosses longínquas, asmas
nostálgicas.
Nas salas da Belle Époque era obrigatória esta figura
ornamental: — a
escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo (e
pétalas coloridas).
O curioso é que a ficção brasileira da época não tenha
notado o
detalhe. Não há, em todo o Machado, uma vaga e escassa
referência, e
repito: — a escarradeira não existia para o autor, para os personagens, nem
para o décor dos ambientes. Mas, em 1915, quando
assassinaram Pinheiro
Machado, ou em 1916, quando vim para o Rio, as famílias
tinham pigarros,
tosses, que as novas gerações não conhecem. Dos meus amigos
atuais, o
único que costuma tossir é o João Saldanha.
Bem me lembro da primeira vez em que fui ao cinema.1916. Eu
era
um garoto de seis anos, e tudo me espantava. Quando apagou a
luz, nasceu
na treva uma misteriosa e tristíssima fauna de tosses.
Depois do filme,
saímos, eu e meu irmão Milton. Olhei e vi: — lá estava ela,
num canto da
sala de espera. Era escarradeira e flor: — subia por um
caule fino para se
abrir em lírio. Larguei-me do irmão e fui lá cuspir. Passei
a mão na boca e
voltei. Vinha feliz, envaidecido, realizado. Ainda me voltei, da porta, para
vê-la. Linda, linda, imitando um lírio ou um copo-de-leite.
Também me vejo na calçada da rua Alegre. Os mesmos seis
anos. Era
pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. E me
fascinava ir de
uma esquina a outra esquina, sempre pelo meio-fio. Eu me equilibrava, no
meio-fio, como se este fosse fino e vibrante como um arame.
Mas eis o que
importa dizer: — fazia esse número acrobático, cuspindo
sempre. Também
me vejo numa sacada, cuspindo na cabeça dos que passavam.
Bem. Preciso agora explicar que toda essa ternura antiga me
veio,
outro dia, num boteco. Entrei lá para comprar cigarros e
fósforos. Um pau-d’água está resmungando: — “Não gosto de nortista”.Passou os
olhos nos
presentes e repetiu, num riso encharcado: — “Não gosto de
nortista”. E
súbito me viu. Vem para mim; disse, cara a cara comigo: —
“Eu nasci em
casa e com parteira”. Fala com uma vaidade feroz e jucunda. Mas é
exatamente o meu caso. Também nasci em casa e com parteira.
E assim o pau-d’água anônimo instalou em mim todo o apelo da
Belle
Époque. Parto em casa, velório em casa, escarradeira na
sala, bronquite das
tias — todo esse conjunto de relações era o Rio de Machado de Assis, de
Pinheiro Machado, de Rui Barbosa. As famílias usavam as
bacias em
abundância. Hoje uma simples bacia deflagra em mim todo um movimento
regressivo, todo um processo proustiano.
E já me ocorre um incidente parlamentar que ouvi contar na
minha
infância. Era no velho Senado. Pinheiro Machado está na
tribuna. Fala, fala
com a nobre insolência gaúcha. Mais adiante está Rui
Barbosa, “o maior dos
brasileiros vivos”. De repente Pinheiro Machado diz: — “Se
eu me manter”.
Rui cortou, com triunfante crueldade: — “Decerto Vossa Excelência
quer
dizer ‘mantiver’”. A lambada doeu na carne e no brio do
caudilho. Vacila ou
nem isso; deu a resposta fulminante: — “Vossa Excelência
pode me corrigir,
e é bom que o faça. Pois, enquanto Vossa Excelência aprendia
a falar certo e
bonito, eu matava e morria na Guerra do Paraguai”.
Chego finalmente a João Guimarães Rosa. O curioso é que o
nome,
por extenso, como num cartão de visitas, soa falso.Guimarães
Rosa devia
chamar-se apenas, e para sempre, Guimarães Rosa. O João lá não devia
estar. Lembro-me de que no sábado, véspera da morte, fui à
casa do Hélio
Pellegrino. E tivemos uma conversa obsessiva sobre o
Grande sertão e seu
autor. O Hélio deu a idéia: — “Falo com o Callado para
promover um
almoço com o Guimarães Rosa. Você topa?”. Claro, claro. E
assim
combinamos o almoço com o morto do dia seguinte.
Coisa curiosa. O Hélio Pellegrino é um admirador nato.
Quando não
há quem admirar, sente-se um frustrado e um vencido.
Todavia, o seu juízo
final sobre Guimarães Rosa não era um juízo final, mas um ponto de
interrogação. O Hélio não sabia o que pensar, o que dizer.
Admitia que o
Grande sertão fosse um esmagador monumento estilístico. O
próprio autor já
dissera: — “Faça pirâmide, não faça biscoito”. Pois seu
livro era uma
pirâmide indubitável. Mas a linguagem rosiana fazia o Hélio
sentir uma
nostalgia cruel de Graciliano, sim, da seca transparência de
Graciliano.
Talvez todo o Guimarães Rosa fosse uma inútil obra imortal. Juntei as
minhas dúvidas às do Hélio. Exagerei as minhas.
No domingo, fiz, como sempre, a Grande Resenha Esportiva
da TV
Globo. Em seguida, a fome da madrugada levou-me ao Antonio’s. Comigo
ia o dr. Hílton Gosling. O Guimarães Rosa já estava morto e
eu não sabia.
Assim como Paris tem seus cafés literários, temos os nossos
cafés, bares,
restaurantes ideológicos. O Antonio’s é um deles. Lá as
nossas esquerdas
vão dizer seus palavrões e babar seus pileques. Tomo uma
sopa que, aliás,
não foi uma sopa — foi um omelete com presunto de Parma. E
ninguém me
falou nada. Não houve um pau-d’água ideológico que me cochichasse: —
“Olha. Morreu o Guimarães Rosa”.
Saio do Antonio’s e venho na carona fraterna do dr.Hílton
Gosling.
Quando é o João Saldanha que me traz, depois da Grande
Resenha, costumo
dizer: — “Espera que eu entre. Senão me assaltam”. Também o dr. Hílton
esperou, de faróis acesos, que eu abrisse o portão.Grito ao
amigo: — “Deus
te abençoe”. O que me pergunto é se, por coincidência,
pensei no autor de
Sagarana. Não, não
pensei. Minha mulher, Lúcia, só dorme depois que eu
chego. Veio abrir a porta dos fundos (aos domingos subo pelo elevador de
serviço e entro pela cozinha). Beijo-a, de passagem. Ela já
sabe, mas ainda
não me diz nada.
Naquele momento, uma coisa não me saía da cabeça — o omelete
que
comera no Antonio’s. Era um veneno para a úlcera. Já a
caminho de casa,
vim pensando: — “Chego e tomo um copo de leite”. O leite acalmaria as
danações da úlcera. O antiácido tem sido a minha mais
recente fé. Bebi o
leite gelado, achei que o omelete estava derrotado e passei para a sala. Foi aí
que Lúcia começou: — “Que coisa horrível aconteceu com o
Guimarães
Rosa!”. Eu desfazia o nó da gravata e parei: — “Que foi?”. E
ela: — “Não
sabia? Morreu”. Ainda perguntei: — “Desastre?”. Disse: —
“Enfarte”.
As más notícias agridem em primeiro lugar a minha úlcera.
Sinto os
seus arrancos. O copo de leite não ia adiantar nada. Fiz
várias exclamações:
— “Que coisa! Não é possível!”. E só faltei perguntar: —
“Morreu como, se
estava vivo?”. Lúcia foi dormir. Fiquei rodando pela sala.
Eu tivera, com a
notícia, duas reações: — primeiro, de pusilanimidade. O
enfarte alheio é
uma ameaça para qualquer um. A nossa saúde cardíaca é um
eterno
mistério, um eterno suspense. Depois do medo, veio algo pior
e mais vil: —
uma espécie de satisfação, de euforia. Ninguém me via, só eu
me via. Vim
para a janela olhar a noite. Cada um de nós tem seu momento
de pulha.
Naquele instante, eu me senti um límpido, translúcido
canalha.
[5/12/1967]
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