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domingo, 8 de julho de 2012

SELECIONEI UMA CRÔNICA DO GRANDE NÉLSON RODRIGUES, TIRADA DO LIVRO "O ÓBVIO ULULANTE - PRIMEIRAS CONFISSÕES" DA EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS.





PIRÂMIDES E BISCOITOS



Antes de falar de João Guimarães Rosa, quero dizer  ainda duaspalavras sobre o velho Rio. (Em nosso idioma, duas palavras são duzentas.)

O brasileiro cospe menos, diria eu. Quanto às nossas mulheres, nem cospem.

Mas, no tempo do fraque e do espartilho, a cidade expectorava muito mais.

Lembro-me de antigas bronquites, de tosses longínquas, asmas nostálgicas.

Nas salas da Belle Époque era obrigatória esta figura ornamental: — a

escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo (e pétalas coloridas).

O curioso é que a ficção brasileira da época não tenha notado o

detalhe. Não há, em todo o Machado, uma vaga e escassa referência, e

repito: — a escarradeira não existia para o autor,  para os personagens, nem

para o  décor  dos ambientes. Mas, em 1915, quando assassinaram Pinheiro

Machado, ou em 1916, quando vim para o Rio, as famílias tinham pigarros,

tosses, que as novas gerações não conhecem. Dos meus amigos atuais, o

único que costuma tossir é o João Saldanha.

Bem me lembro da primeira vez em que fui ao cinema.1916. Eu era

um garoto de seis anos, e tudo me espantava. Quando apagou a luz, nasceu

na treva uma misteriosa e tristíssima fauna de tosses. Depois do filme,

saímos, eu e meu irmão Milton. Olhei e vi: — lá estava ela, num canto da

sala de espera. Era escarradeira e flor: — subia por um caule fino para se

abrir em lírio. Larguei-me do irmão e fui lá cuspir. Passei a mão na boca e

voltei. Vinha feliz, envaidecido, realizado. Ainda  me voltei, da porta, para

vê-la. Linda, linda, imitando um lírio ou um copo-de-leite.

Também me vejo na calçada da rua Alegre. Os mesmos seis anos. Era

pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. E me fascinava ir de

uma esquina a outra esquina, sempre pelo meio-fio.  Eu me equilibrava, no

meio-fio, como se este fosse fino e vibrante como um arame. Mas eis o que

importa dizer: — fazia esse número acrobático, cuspindo sempre. Também

me vejo numa sacada, cuspindo na cabeça dos que passavam.

Bem. Preciso agora explicar que toda essa ternura antiga me veio,

outro dia, num boteco. Entrei lá para comprar cigarros e fósforos. Um pau-d’água está resmungando: — “Não gosto de nortista”.Passou os olhos nos

presentes e repetiu, num riso encharcado: — “Não gosto de nortista”. E

súbito me viu. Vem para mim; disse, cara a cara comigo: — “Eu nasci em

casa e com parteira”. Fala com uma vaidade feroz e  jucunda. Mas é

exatamente o meu caso. Também nasci em casa e com parteira.

E assim o pau-d’água anônimo instalou em mim todo o apelo da Belle

Époque. Parto em casa, velório em casa, escarradeira na sala, bronquite das

tias — todo esse conjunto de relações era o Rio de  Machado de Assis, de

Pinheiro Machado, de Rui Barbosa. As famílias usavam as bacias em

abundância. Hoje uma simples bacia deflagra em mim  todo um movimento

regressivo, todo um processo proustiano.

E já me ocorre um incidente parlamentar que ouvi contar na minha

infância. Era no velho Senado. Pinheiro Machado está na tribuna. Fala, fala

com a nobre insolência gaúcha. Mais adiante está Rui Barbosa, “o maior dos

brasileiros vivos”. De repente Pinheiro Machado diz: — “Se eu me manter”.

Rui cortou, com triunfante crueldade: — “Decerto Vossa Excelência quer

dizer ‘mantiver’”. A lambada doeu na carne e no brio do caudilho. Vacila ou

nem isso; deu a resposta fulminante: — “Vossa Excelência pode me corrigir,

e é bom que o faça. Pois, enquanto Vossa Excelência aprendia a falar certo e

bonito, eu matava e morria na Guerra do Paraguai”.

Chego finalmente a João Guimarães Rosa. O curioso é que o nome,

por extenso, como num cartão de visitas, soa falso.Guimarães Rosa devia

chamar-se apenas, e para sempre, Guimarães Rosa. O  João lá não devia

estar. Lembro-me de que no sábado, véspera da morte, fui à casa do Hélio

Pellegrino. E tivemos uma conversa obsessiva sobre  o  Grande sertão  e seu

autor. O Hélio deu a idéia: — “Falo com o Callado para promover um

almoço com o Guimarães Rosa. Você topa?”. Claro, claro. E assim

combinamos o almoço com o morto do dia seguinte.

Coisa curiosa. O Hélio Pellegrino é um admirador nato. Quando não

há quem admirar, sente-se um frustrado e um vencido. Todavia, o seu juízo

final sobre Guimarães Rosa não era um juízo final,  mas um ponto de

interrogação. O Hélio não sabia o que pensar, o que dizer. Admitia que o

Grande sertão fosse um esmagador monumento estilístico. O próprio autor já

dissera: — “Faça pirâmide, não faça biscoito”. Pois seu livro era uma

pirâmide indubitável. Mas a linguagem rosiana fazia o Hélio sentir uma

nostalgia cruel de Graciliano, sim, da seca transparência de Graciliano.

Talvez todo o Guimarães Rosa fosse uma inútil obra  imortal. Juntei as

minhas dúvidas às do Hélio. Exagerei as minhas.

No domingo, fiz, como sempre, a Grande Resenha Esportiva da  TV

Globo. Em seguida, a fome da madrugada levou-me ao  Antonio’s. Comigo

ia o dr. Hílton Gosling. O Guimarães Rosa já estava morto e eu não sabia.

Assim como Paris tem seus cafés literários, temos os nossos cafés, bares,

restaurantes ideológicos. O Antonio’s é um deles. Lá as nossas esquerdas

vão dizer seus palavrões e babar seus pileques. Tomo uma sopa que, aliás,

não foi uma sopa — foi um omelete com presunto de Parma. E ninguém me

falou nada. Não houve um pau-d’água ideológico que  me cochichasse: —

“Olha. Morreu o Guimarães Rosa”.

Saio do Antonio’s e venho na carona fraterna do dr.Hílton Gosling.

Quando é o João Saldanha que me traz, depois da Grande Resenha, costumo

dizer: — “Espera que eu entre. Senão me assaltam”.  Também o dr. Hílton

esperou, de faróis acesos, que eu abrisse o portão.Grito ao amigo: — “Deus

te abençoe”. O que me pergunto é se, por coincidência, pensei no autor de

Sagarana.  Não, não pensei. Minha mulher, Lúcia, só dorme depois que eu

chego. Veio abrir a porta dos fundos (aos domingos  subo pelo elevador de

serviço e entro pela cozinha). Beijo-a, de passagem. Ela já sabe, mas ainda

não me diz nada.

Naquele momento, uma coisa não me saía da cabeça — o omelete que

comera no Antonio’s. Era um veneno para a úlcera. Já a caminho de casa,

vim pensando: — “Chego e tomo um copo de leite”. O  leite acalmaria as

danações da úlcera. O antiácido tem sido a minha mais recente fé. Bebi o

leite gelado, achei que o omelete estava derrotado  e passei para a sala. Foi aí

que Lúcia começou: — “Que coisa horrível aconteceu  com o  Guimarães

Rosa!”. Eu desfazia o nó da gravata e parei: — “Que foi?”. E ela: — “Não

sabia? Morreu”. Ainda perguntei: — “Desastre?”. Disse: — “Enfarte”.

As más notícias agridem em primeiro lugar a minha úlcera. Sinto os

seus arrancos. O copo de leite não ia adiantar nada. Fiz várias exclamações:

— “Que coisa! Não é possível!”. E só faltei perguntar: — “Morreu como, se

estava vivo?”. Lúcia foi dormir. Fiquei rodando pela sala. Eu tivera, com a

notícia, duas reações: — primeiro, de pusilanimidade. O enfarte alheio é

uma ameaça para qualquer um. A nossa saúde cardíaca é um eterno

mistério, um eterno suspense. Depois do medo, veio algo pior e mais vil: —

uma espécie de satisfação, de euforia. Ninguém me via, só eu me via. Vim

para a janela olhar a noite. Cada um de nós tem seu momento de pulha.

Naquele instante, eu me senti um límpido, translúcido canalha.

[5/12/1967]

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